Duas mulheres no cerco das interdições

ATÉ AMANHÃ no Irã atual e BLUE JEAN na Inglaterra de 1988: o ultraconservadorismo é para ser assimilado ou enfrentado? 

Uma professora no armário

Londres, 1988. O governo de Margaret Thatcher propunha um projeto de lei contra a promoção de “imagem positiva da homossexualidade” nas escolas. Como sói acontecer nos discursos ultraconservadores, era preciso “salvar nossas crianças”, impondo-lhes “valores morais tradicionais”. Nesse contexto, uma professora como Jean (Rosy McEwen) tinha que ocultar sua opção sexual para não perder o emprego. Tinha que esconder a namorada, que fazia o figurino completo da “sapatão” da época, com piercing, tatuagem, cabelo reco e roupas folgadonas.

Blue Jean, longa de estreia da diretora inglesa Georgia Oakley, é um acurado retrato daquele momento de angústia para a comunidade LGBT britânica. Os não assumidos recorriam aos guetos e à dissimulação. Jean estava cercada de conservadorismo e autoritarismo: os colegas professores, a irmã careta e sua família, as alunas homofóbicas. A permanência no armário começa a cobrar seu preço quando uma nova aluna das suas aulas de educação física demonstra compartilhar o mesmo segredo. O risco da revelação turva seus caminhos pessoais e profissionais.

Além do rosto perfeito, a atriz Rosy McEwen tem a intensidade e a sutileza adequadas para compor o perfil dessa mulher que tenta conciliar dois mundos. Sua relação com a namorada (Kerrie Hayes) tem momentos bastante sugestivos do que era viver um romance fora dos padrões em tempos de intolerância. Da mesma forma, a aluna Lois (Lucy Halliday) personifica a angústia da adolescência submetida ao tacão da normatividade.

Em termos de histórico LGBT, Blue Jean não é nenhuma grande novidade, mas toca em cordas sensíveis e é muito bem dirigido. Se falha em alguma coisa é na caracterização aparentemente idealizada da “república” de lésbicas como um ambiente eternamente esfuziante em recreio e festas. De resto, é um filme sóbrio, mas incisivo em sua crítica à homofobia institucionalizada.

>> Blue Jean está nos cinemas.



Uma mãe solo em apuros

Mais um bom filme iraniano chega ao streaming brasileiro. Como tantos outros, Até Amanhã (Ta Farda) trata dos problemas que cidadãos comuns enfrentam perante as normas de conduta conservadoras estimuladas pelo regime islâmico. O filme de Ali Asgari transcorre num único e estafante dia em Teerã, quando a jovem mãe Fereshteh (Sadaf Asgari, sobrinha do diretor) tem que resolver uma situação periclitante: seus pais vêm visitá-la de repente e ela precisa esconder o bebê que teve sem se casar.

Um pouco como nos dramas angustiantes dos irmãos Dardenne, Fereshteh bate de porta em porta pedindo que alguém fique com a criança e seus pertences de mãe durante aquela noite. Acontece que tanto vizinhos, como amigos, parentes e desconhecidos têm suas razões para não atendê-la, uma vez que todos estão cerceados pela interdição que pesa sobre as mães solteiras. O pai da criança oferece uma solução que se revela frustrada. Atefeh (Ghazal Shojaei), sua melhor amiga, que mora num dormitório de moças, é quem se arrisca a ajudá-la até onde possível, numa escalada de suspense que culmina com a chegada dos pais de Fereshteh.

Até Amanhã é outro exemplar da perícia dos cineastas iranianos em tornar um caso humano relativamente corriqueiro numa questão altamente dramática. Eis mais uma personagem travando uma guerra santa particular para alcançar seu objetivo contra todas as adversidades. Nesse caso, temos uma mulher vivendo à margem das estruturas familiares tradicionais e driblando um sistema opressor que penaliza terrivelmente quem o desafia. Ao mesmo tempo, é uma amostra do que as mulheres contemporâneas estão sendo capazes de fazer em prol de si mesmas – e de como estão liderando as esperanças de uma nova revolução que as liberte no Irã.

>> ATÉ AMANHÃ está na plataforma Filmicca.

 

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